- por Nilson Sousa
Paula Luíza Germano Santos e Leonardo Varella Giannetti
Como bem relembrou Tathiane Piscitelli[1], “a estabilidade jurídica depende não apenas de leis de aplicação clara e isonômica, mas, substancialmente, de um Poder Judiciário que seja capaz de encerrar disputas”.
A observação vem a calhar, notadamente para as recentes discussões envolvendo o ICMS-Difal. Apesar de não ser novidade, o debate, nesse ponto, não é trivial.
No julgamento do RE 1.287.019/DF (Tema nº 1.093) em sede de Repercussão Geral e da ADI nº 5469/DF, o Supremo Tribunal Federal decidiu pela inconstitucionalidade formal da cobrança do Difal via Convênio Confaz nº 93/2015, por se tratar de matéria exclusiva de lei complementar.
Na oportunidade, a Corte modulou os efeitos da declaração de inconstitucionalidade “quanto às cláusulas primeira, segunda, terceira e sexta, a partir do exercício financeiro seguinte à conclusão deste julgamento (2022), aplicando-se a mesma solução em relação às respectivas leis dos estados e do Distrito Federal, para as quais a decisão deverá produzir efeitos a partir do exercício financeiro seguinte à conclusão deste julgamento (2022)”.
A partir dessa decisão, houve movimentação no Congresso para que a lei complementar regulamentadora da cobrança do Difal fosse publicada até o final de 2021, de modo que a arrecadação nos anos subsequentes não fosse afetada.
A despeito dos esforços envidados pelos interessados, a LC nº. 190 somente foi publicada em 05 de janeiro de 2022, o que ensejou nova controvérsia no Judiciário, visando a afastar a cobrança do Difal sobre as remessas interestaduais destinadas a não contribuintes do ICMS neste exercício, em observância ao princípio da anterioridade anual/nonagesimal que deve preceder a instituição ou majoração de tributos.
Muitas decisões foram proferidas reconhecendo o direito do contribuinte a recolher o Difal apenas em 2023. No entanto, essas decisões estão sendo suspensas pelos presidentes dos tribunais estaduais, que têm deferido requerimentos de Suspensão de Liminar e Sentença, formulados pelos Estados. É o caso de 13 Estados (AL, BA, CE, ES, GO, MA, MT, PE, PB, PI, SC, SE e SP) e do Distrito Federal.[2]
A Suspensão de Liminar e Sentença, também conhecida como Suspensão de Segurança, encontra previsão no artigo 15 da Lei nº 12.016/2009. Trata-se de medida que remonta ao período ditatorial, mas ainda existente no nosso ordenamento jurídico e que dá ao presidente de um tribunal o poder de suspender os efeitos de decisões judiciais proferidas em desfavor do ente público quando puderem causar grave lesão à ordem, à saúde, à segurança e à economia pública.
Apesar de se tratar de um instrumento processual de uso restrito e excepcional, não raras vezes o ente público o utiliza de forma indiscriminada em matéria tributária, sob o genérico argumento de que há existiria o risco de efeito multiplicador na propositura de ações em massa pelos contribuintes, causando impacto na arrecadação.
Com relação aos requerimentos de suspensão de segurança deferidos para sustar os efeitos das decisões que garantiram aos contribuintes o direito de não recolher o ICMS-Difal em 2022, parece-nos que as presidências dos Tribunais Estaduais não se aprofundaram na verificação dos requisitos para a concessão da medida.
Assume especial relevo a provocação a respeito do real potencial de grave lesão à ordem, à saúde, à segurança e à economia pública das decisões atingidas pela suspensão de segurança. Em primeiro lugar, não podemos olvidar que os impactos no interesse público já haviam sido ponderados pela Corte Suprema ao declarar a inconstitucionalidade da cobrança do Difal por meio do Convênio Confaz nº 93/2015 (Tema nº. 1.093). Por esta razão, foi determinada a modulação dos efeitos nesse julgamento.
Mesmo tendo concluído que os estados nunca deveriam ter exigido o Difal sem prévia lei complementar que o amparasse, o STF modulou os efeitos da declaração de inconstitucionalidade, com esteio no artigo 27 da Lei nº 9.868/99, para que incidissem apenas a partir de 1/1/2022.
A modulação dos efeitos, por si só, representou uma medida de caráter extraordinário, que teve por escopo, precisamente, conceder aos Estados uma “válvula de escape”, a fim de adequar os efeitos da inconstitucionalidade às suas respectivas situações financeiras. Naquele momento, o STF já havia considerado o risco de grave lesão à economia dos Estados, concebendo, como solução definitiva para esses efeitos colaterais, a modulação, nos termos em que foi proposta (1/1/2022).
A modulação visou, rigorosamente, a compatibilizar os interesses sociais conflitantes, a saber, os impactos no erário dos estados e a imposição aos contribuintes de uma exigência em desacordo com a Constituição. Afinal, não se pode perder de vista que até 31/12/2021, a cobrança do Difal era feita pelos estados na contramão da constitucionalidade e legalidade, tal como decidiu o STF, o que também gerou significativos prejuízos sociais tendo em vista que os contribuintes foram obrigados a suportar ônus financeiros indevidos a esse título desde 2016.
Em contrapartida, ao deferir os pedidos de suspensão de segurança, os Tribunais Estaduais analisaram, de forma superficial e precária, o potencial de “grave lesão à ordem, à saúde, à segurança e à economia públicas”, aspectos estes que, conforme visto, já haviam sido devidamente ponderados pelo STF por ocasião da modulação de efeitos.
O resultado prático da suspensão de segurança, nesse caso, é a alteração, por vias oblíquas, da própria modulação de efeitos estabelecida pela Corte Suprema.
Não bastasse, em todas as decisões de suspensão de segurança sobre o tema até então proferidas, não houve um esforço mínimo, por parte dos Estados, na comprovação do real risco de lesão ao interesse público advindo das liminares/sentenças que pretendem suspender.
Na maior parte dos casos, os dados fornecidos pelos estados para justificar a suspensão da segurança se restringem a números de arrecadação prevista para o ICMS-Difal em suas respectivas leis orçamentárias, cujas projeções foram baseadas nos valores arrecadados do imposto nos últimos anos[3].
Esses dados, no entanto, possuem alto grau de abstração. Primeiro, porque aludem à arrecadação total (e, diga-se de passagem, inconstitucional), dos últimos anos, em relação a todos os contribuintes do Difal. Ainda que pudéssemos admitir que esses dados são capazes, por si só, de sustentar a projeção de arrecadação para os anos seguintes (sem considerar as demais variáveis econômicas que influenciam esse cenário), o “potencial de lesão” prenunciado só alcançaria de fato esses valores se todos os contribuintes do Difal ajuizassem medidas judiciais contestando a exigência — o que é sabidamente improvável.
Ou seja, o risco de lesão à ordem, à saúde, à segurança e à economia pública foi analisado sem apego às reais chances estatísticas de concretização, pautando-se em meros juízos intuitivos (ainda que bem-intencionados). Ora, meras intuições e palpites não parecem contribuir com a efetividade da jurisdição. E pior, tem-se um “efeito multiplicador” dos prejuízos daí decorrentes, considerando que os provimentos decisórios de suspensão de segurança são típicas deliberações universalizáveis, que afetam inúmeros particulares.
Os provimentos que discorram a respeito de eventuais lesões à ordem, à saúde, à segurança e à economia pública demandam um grau mínimo de certeza e substância das inferências utilizadas pelo julgador. A ausência de estudos capazes de suportar a conclusão pelo risco efetivo ao interesse público redunda em um lamentável cenário em que os fins justificam os meios. Tais prognoses inerentes à argumentação consequencialista, sem lastro em estudos técnicos, esbarram, ao nosso ver, no propósito do instituto da suspensão de segurança.
A propósito, a defesa irrestrita do erário em si só faz sentido se a pretensão por detrás deste discurso estiver em conformidade com uma adequada hermenêutica constitucional, sem a qual sequer se pode falar que há o risco de grave lesão.
Em outras palavras, não há que se falar em lesão se os direitos assegurados pelas decisões sob os quais recairão a suspensão de segurança já foram analisados e garantidos pelo próprio STF. Pelo contrário: emitir pronunciamento em colisão com a determinação do STF e estender, por vias oblíquas, a modulação de efeitos para além do prazo previsto pela Corte, certamente configurarão lesão ao interesse público, notadamente, à segurança jurídica que é um de seus pilares.
Essa reflexão no caso do ICMS Difal é de maior relevância, pois estamos diante de um tributo indireto por natureza. Obter uma liminar para suspender a exigibilidade do tributo nesse caso é de suma importância, pois caso haja o seu pagamento no curso da demanda, para viabilizar a repetição do indébito, os contribuintes deverão demonstrar que assumiram o seu ônus financeiro, em observância ao artigo 166 do CTN. A prova da ausência de repercussão econômica e financeira do ICMS é complexa — além de ser prova de um fato negativo — acarretando no enriquecimento sem causa do ente estatal às custas de violações dos direitos dos contribuintes.
De mais a mais, na incerteza de quando viria a ser publicada a lei complementar que regulasse a cobrança do Difal, os estados deveriam ter se planejado, antevendo a impossibilidade de inclusão das receitas de arrecadação respectivas em suas estimativas orçamentárias. Não se ignora que a modulação de efeitos determinada pelo STF também teve por escopo conceder um prazo razoável para que o Congresso editasse a lei complementar, no entanto, era de ciência de todos os envolvidos que a dita lei poderia não vir a ser editada no ano de 2021.
Se a “válvula de escape” concedida pelo STF não foi suficiente para que a lei fosse publicada em 2021, de modo que os Estados não enfrentassem perdas arrecadatórias, ela foi útil para permitir que os entes se programassem em face da nova situação e definissem outros meios para fazer frente ao déficit que viria, até que fosse viável retomar a cobrança do Difal.
Por outro lado, a insistência dos estados em promover a cobrança inconstitucional de tributos resvala no aumento desenfreado da litigiosidade, num círculo vicioso que, paradoxalmente, afeta as contas públicas como um todo.
A busca por resultados a curto prazo faz com que os entes públicos estipulem metas de arrecadação objetivando efeito caixa imediato. No entanto, quando essas medidas vão de encontro com as limitações constitucionais ao poder de tributar, o prejuízo pode ser dobrado: além de não receber os recursos almejados, são devidas despesas de sucumbência, sem contar nos custos incorridos com a mobilização das Procuradorias e do Poder Judiciário.
De toda forma, parafraseando Henry Louis Mencken, “para todo problema complexo, existe sempre uma solução simples, elegante e completamente errada”, e no final das contas basta uma decisão de cunho consequencialista e desguarnecida de base fática robusta para que o ônus dessa sucessão de decisões temerárias do Executivo seja transferido para os contribuintes, o que deteriora a noção sistêmica ora esposada.
Por fim, tem sido comum nas decisões de suspensão de segurança que os presidentes dos Tribunais não analisem o mérito da questão, ou seja, quando o Difal poderá ser cobrado. Os julgadores se limitam a verificar apenas os impactos que as decisões concedidas aos contribuintes poderiam gerar no erário.
Em uma primeira leitura, a jurisprudência[4] parece sustentar que a análise do pedido de suspensão não deve adentrar ao mérito da demanda, bastando que seja demonstrado o risco de grave lesão ao interesse público. Não é por outra razão que as Cortes Superiores entendem que o instituto possui viés político[5].
No entanto, na qualidade de incidente de contracautela, a suspensão de segurança pressupõe a incursão, ainda que superficial, no mérito da demanda. Ora, quem fiscaliza se há risco de grave lesão ao interesse público, está, substancialmente, avaliando o mérito ou demérito da escolha efetuada. Afinal, só haverá uma lesão genuína se o prejuízo sob exame decorrer da provável violação de direitos do ente público lesado.
Portanto, a primazia da verificação do risco de grave lesão ao interesse público não exclui a necessidade de perpassar, ainda que de forma perfunctória, no mérito da questão a ser decidida. Os critérios são, na verdade, fronteiriços e interligados, o que nos permite avaliar o real potencial de risco de lesão ao interesse público.
As Cortes Superiores já reconheceram a necessidade de se examinar o mérito da demanda em pedidos de suspensão pretéritos, ressalvando que esse exame deve ser superficial[6]. Aliás, recentemente o STF[7] indeferiu pedido de suspensão de segurança do estado do Maranhão sobre cobrança do Difal, e não dispensou o juízo mínimo de plausibilidade do direito.
O que se percebe das atuais decisões de suspensão de segurança proferidas pelas presidências dos tribunais estaduais é uma total ausência de consideração aos aspectos meritórios, que seriam justamente os pressupostos para identificar se há risco de lesão a interesse público.
A presente reflexão nos convida a problematizar a forma como a suspensão de segurança vem sendo aplicada em matéria tributária, cuja utilização requer bom senso, bem como, análise lúcida e pontual de cada caso afetado pelo expediente – o que não tem ocorrido com frequência, especialmente nas recentes discussões do ICMS-Difal.
Não podemos esquecer que a atual legislação processual já conta com instrumentos para combater o efeito multiplicador de decisões, tais como a repercussão geral, a sistemática dos recursos repetitivos, e o incidente de resolução de demandas repetitivas, muito embora aprofundar esse aspecto escape aos propósitos deste breve ensaio.
[1]https://valor.globo.com/legislacao/fio-da-meada/post/2019/11/icms-na-base-de-calculo-do-pis-e-da-cofins-e-a-indefinicao-do-supremo.ghtml
[2] https://www.jota.pro/tributos/5875/busca
[3] É o caso, por exemplo, dos seguintes estados: Sergipe, Maranhão, Pernambuco e do Distrito Federal.
[4] SS 5305, Relator: LUIZ FUX, Tribunal Pleno, DJe de 02/04/2020
[5] AgRg no AREsp 126.036/RS, rel. Min. Benedito Gonçalves, DJe de 07/12/2012
[6] Vide, por exemplo: STJ, Corte Especial, AgRg na SS 2.482/MA, Rel. Min. Ari Pargendler, j. 31/08/2011; SS/AgR 1.149-9-PE, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, RT 742/162 e SS 846 AgR, Relator: Sepúlveda Pertence, Tribunal Pleno, J: 26/05/1996.
[7]SS 5506, Relator(a): LUIZ FUX, DJe 16/03/2022
Paula Luíza Germano Santos e Leonardo Varella Giannetti
Paula Luíza Germano Santos é advogada no Rolim, Viotti, Goulart, Cardoso, Advogados. Pós-graduada em gestão com ênfase em Finanças pela Fundação Dom Cabral (FDC) e especialista em Direito Tributário pelo Ibet (Instituto Brasileiro de Estudos Tributários).
Leonardo Varella Giannetti é advogado do Rolim, Viotti, Goulart, Cardoso Advogados, doutor e Mestre em Direito Público pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-MG) e professor de cursos de pós-graduação em Direito Tributário do IEC-PUC Minas.
Fonte: APET