- por Nilson Sousa
Por Beatriz Olivon — De Brasília
Um precedente da Justiça paulista livrou uma empresa de comércio exterior da tributação de despesas com descarga, manuseio e conferência de mercadorias em portos e aeroportos, a chamada capatazia, em relação ao passado. Enquanto o Superior Tribunal de Justiça (STJ) não decide a partir de quando a cobrança é válida, companhias do setor vêm recorrendo às instâncias inferiores do Judiciário para tentar pagar só da data da decisão da Corte superior em diante.
Uma definição do STJ é importante para a União porque a decisão favorável à tributação afasta uma perda de R$ 12 bilhões, somente se as empresas não tiverem direito a receber de volta o que pagaram nos últimos cinco anos.
O impacto da modulação dos efeitos poderá ser ainda maior para as empresas. Isso porque não reflete só sobre o cálculo do Imposto de Importação – tributo em discussão no STJ. O valor aduaneiro, que inclui as despesas com capatazia, serve como base também para o IPI, PIS e Cofins-Importação e até ICMS.
As turmas do STJ decidiam de modo contrário à tributação. Em março de 2020, porém, ao analisar recurso repetitivo, a 1ª Seção da Corte decidiu que a capatazia faz parte do valor aduaneiro (REsps 1799306, 1799308 e 1799309). Como o Supremo Tribunal Federal (STF) reconheceu em julho a inexistência de repercussão geral do tema, deixou a palavra final para o STJ. O pedido de modulação dos efeitos, contudo, ainda não foi julgado pelos ministros.
Agora, uma juíza da primeira instância paulista “modulou”, afastando a tributação sobre capatazia até a data da do julgamento do recurso repetitivo. Cabe recurso.
Depois do julgamento do recurso repetitivo, a Hetros Importação e Exportação pediu a exclusão das despesas com capatazia da base de cálculo do Imposto de Importação, ao menos para o período pretérito. Pediu o reconhecimento do seu direito à compensação dos valores pagos nos últimos cinco anos, antes de ter proposto a ação. Argumentou que o entendimento do STJ mudou em 2020, o que trazia insegurança jurídica.
A juíza da 17ª Vara Cível Federal de São Paulo, Ana Lucia Petri Betto, concedeu o pedido. Considerou que o respeito à orientação jurisprudencial das Cortes superiores privilegia a segurança jurídica, permitindo a previsibilidade das decisões judiciais e menores custos de operação. “Até a data do aludido julgamento, a parte autora [Hetros Importação e Exportação] tinha a legítima expectativa de obter provimento favorável ao seu pleito”, diz.
Na decisão, a juíza lembra ainda que os tribunais superiores consideram a modulação necessária quando há mudança de jurisprudência. Por isso, manteve o direito da empresa de não tributar a capatazia até a data do julgamento em que houve a alteração do entendimento sobre o assunto (processo nº 5001670-98.2020.4.03.6100).
Também foi afastada a condenação em honorários no caso, segundo Luan Moreira, do escritório Arbach e Farhat Advogados. De acordo com ele, é uma boa sinalização, por um juiz de primeira instância, de que há prejuízo à pessoa jurídica com a mudança de posicionamento da Corte.
“É inusitado um juiz de primeiro grau conceder a modulação”, afirma Moreira. O advogado aponta que a decisão é um bom precedente para outros contribuintes na mesma situação. “Enquanto o STJ não julga [o pedido de modulação] a gente fica meio como na tese da retirada do ICMS da base do PIS e da Cofins”, afirma Moreira em referência à tese do século.
Naquele caso, o STF decidiu a favor dos contribuintes, mas até a definição da modulação, nos embargos julgados este ano, havia indefinição nos tribunais inferiores, inclusive com diferentes “modulações” sendo aplicadas.
O magistrado de primeira instância pode usar a modulação para proteger o contribuinte que tinha jurisprudência favorável, segundo Ligia Regini, sócia do BMA Advogados. “Esse é o indício da inovação do Código de Processo Civil de 2015. Não é comum, mas o código fala que juízes [de primeira instância] podem modular”, afirma a especialista.
A modulação tem relação com precedente de efeito vinculante de tribunal superior, para dar uniformidade, segundo a advogada. Por isso, acrescenta ela, em instâncias ordinárias do Judiciário a modulação é excepcional. Mas a lei processual permite.
Ao analisar o caso da Hetros Importação e Exportação, Ligia reforça que a sentença valoriza a jurisprudência antes firmada, mas sem desconsiderar que houve uma mudança de entendimento. “Ela tenta equilibrar a mutação da jurisprudência sem ofender a segurança jurídica do contribuinte”, afirma.
A Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional (PGFN) vai recorrer. Por meio de nota, informou que a decisão está em evidente descompasso com o precedente do STJ. Também disse que, nos poucos casos em que essa argumentação foi apresentada, especialmente no Tribunal Regional Federal (TRF) da 3ª Região, com sede em São Paulo, o pedido foi negado.
“Por ocasião do julgamento da tese, foi confirmado, sem qualquer limitação, que os serviços de capatazia estão incluídos na composição do valor aduaneiro e integram a base de cálculo do Imposto de Importação”, afirma a PGFN na nota.
De acordo com Sergio Aquino, presidente da Federação Nacional das Operações Portuárias (Fenop), o tema preocupa em relação aos reflexos no sistema portuário como um todo. Por enquanto, não é possível estimar as consequências, segundo ele, mas Aquino destaca que a decisão do STJ, do jeito que ocorreu – com a surpresa da mudança de jurisprudência – demonstra a instabilidade e insegurança jurídica do país, “o que é extremamente prejudicial para o comércio exterior e atração de investimentos privados”.
Fonte: Valor Econômico
Associação Paulista de Estudos Tributários, 28/7/2021