TRIBUTAÇÃO DE DIVIDENDOS E OUTROS ERROS…

TRIBUTAÇÃO DE DIVIDENDOS E OUTROS ERROS…

Nada mais inoportuno do que o pacote de medidas, que se auto intitula de “reforma tributária”, diante da gravíssima crise econômica em curso no País, com as empresas ainda em recuperação, taxas elevadas de desemprego e diversos investimentos em estruturação. Na atualidade, em sentido diametralmente oposto, todos os países ainda estão a adotar medidas de recuperação das empresas e negócios afetados, como bem destaca o relatório da OCDE “Tax Policy Reforms 2021: Special Edition on Tax Policy during the Covid-19 Pandemic”.

Desde o Plano Real, a isenção dos dividendos e a dedutibilidade do JCP foram os principais instrumentos de atração de investimentos do País, apesar do custo Brasil e das conhecidas externalidades decorrentes da mais elevada tributação sobre consumo que se conhece no mundo, além da insegurança jurídica, em especial do ICMS, principal motivo inibidor de investimentos, como destacam várias publicações internacionais.

Não se desconhece a urgência e necessidade de reformas no sistema tributário nacional, mormente a da renda. Contudo, as demandas sempre foram dirigidas para melhorias de simplificação, desburocratização e segurança jurídica no âmbito dos tributos do consumo (ICMS, ISS, IPI e PIS/COFINS), primordialmente, e só em etapa secundária, após cumprido este ciclo, passa-se à tributação da renda e do patrimônio.

O governo, porém, decide inverter a ordem e promover o maior aumento de carga tributária já visto nos últimos 25 anos, com a ruína do regime de lucro presumido e completa afetação aos setores de serviços, construção civil, agronegócio, educação, turismo, restaurantes e outros. Um espetáculo de agressividade fiscal, sem nenhuma neutralidade. O projeto ainda estimula a proliferação de pessoas jurídicas para quem tenha receita inferior a vinte mil reais (pejotização em massa), amplia a burocratização das pessoas físicas e certamente trará como resultado um aumento exponencial da informalidade e da sonegação.

No Brasil, como a tributação vê-se concentrada nos tributos de produção ou de circulação das mercadorias e serviços, a tendência foi sempre a preponderância dos controles do Fisco sobre as empresas. Assim, neste modelo de tributação em bases objetivas, o regime do “lucro presumido” teve um êxito notável na formalização da nossa economia. Entretanto, a partir desta reforma, como o fluxo de receitas ou faturamento é o mesmo que se presta como base de incidência do PIS/Cofins (3,65%), ou da CBS (12%), do lucro presumido e dos dividendos (20%), pode-se ter uma “tripla tributação econômica” sobre o mesmo fator de riqueza, o que pode ser assaz desestimulante.

Ao pretender passar para uma tributação de dividendos, da empresa para a pessoa do investidor, o simples mecanismo de controle das distribuições disfarçadas de lucros (DDL) pode se mostrar insuficiente para conter as fraudes e informalidades, além dos expedientes típicos destas práticas, como volta do uso do cheque (nos tempos do PIX), aumento da demanda por papel moeda, vendas sem notas fiscais e outras mazelas.

Para os que dizem que não há muitos países no mundo que não tributam dividendos ou que possuem um regime de JCP, vale lembrar que não há países no mundo que tenham tributação tão gravosa sobre “receitas” ou “faturamento”, ou ainda que na apuração do imposto sobre a renda, tenham uma base de cálculo tão ampla, pela redução dos elementos negativos que se permite deduzir, como despesas, custos etc. Basta ver o peso dos custos com folha de salários nas empresas, ou mesmo o custo agregado com os tributos indiretos (ICMS, ISS, IPI, PIS/Cofins, todos com não cumulatividade parcial ou até mesmo cumulativos).

O momento pede redução de gasto público, e não orçamentos perdulários, como o caso das verbas na ordem de 40 bilhões com emendas de relator, uma inconstitucionalidade aviltante, que só existe para promover a reeleição de políticos. No lugar de austeridade, fundo eleitoral na casa dos 6 bilhões. Ao invés de reforma administrativa, generosos benefícios fiscais para grupos de apoio do governo. E para custear tudo isso, uma reforma tributária que trará como resultado tornar ainda mais pobre a classe média brasileira, que sequer se recuperou das enormes dificuldades geradas pela pandemia, com reduzidas ajudas do setor público.

Contudo, se ainda assim o Congresso Nacional decidir levar adiante esta proposta, vale considerar que a tributação dos dividendos reclama o necessário respeito à garantia de segurança jurídica, quanto à intributabilidade das distribuições decorrentes dos lucros apurados antes de 31.12.2021. Por uma, porque temos o princípio da irretroatividade das leis tributárias que criam ou aumentam tributos na Constituição. E, por duas, porque o fato gerador relativo aos dividendos encontra-se submetido à isenção, pela redação do art. 10 da Lei nº 9.249/95, que assim prescreve:

Art. 10. Os lucros ou dividendos calculados com base nos resultados apurados a partir do mês de janeiro de 1996, pagos ou creditados pelas pessoas jurídicas tributadas com base no lucro real, presumido ou arbitrado, não ficarão sujeitos à incidência do imposto de renda na fonte, nem integrarão a base de cálculo do imposto de renda do beneficiário, pessoa física ou jurídica, domiciliado no País ou no exterior.

§ 1º No caso de quotas ou ações distribuídas em decorrência de aumento de capital por incorporação de lucros apurados, a partir do mês de janeiro de 1996, ou de reservas constituídas com esses lucros, o custo de aquisição será igual à parcela do lucro ou reserva capitalizado, que corresponder ao sócio ou acionista.

§ 2º A não incidência prevista no caput inclui os lucros ou dividendos pagos ou creditados a beneficiários de todas as espécies de ações previstas no art. 15 da Lei nº 6.404, de 15 de dezembro de 1976, ainda que a ação seja classificada em conta de passivo ou que a remuneração seja classificada como despesa financeira na escrituração comercial.

A isenção, portanto, alcança diretamente os dividendos recebidos. Mais claro, impossível. O texto do referido art. 10 da Lei nº 9.249/95 é explícito ao destacar que “nem integrarão a base de cálculo do imposto de renda do beneficiário, pessoa física ou jurídica, domiciliado no País ou no exterior”. Talvez os incautos que alardeiam uma arrecadação de 36 bilhões previstos para o primeiro ano de vigência da medida devam se conter, pois o tal “fato gerador autônomo”, tão decantado, também este, está submetido à isenção, como tenho repetido em sucessivas exposições e debates.

Destarte, caso as autoridades fiscais pretendam arrecadar qualquer imposto sobre lucros acumulados, reinvestidos ou em quaisquer dos fundos de reservas, certamente terá que enfrentar um longo e temerário contencioso tributário, de ínfima chance de êxito.

Quanto aos dividendos, vale considerar que a tributação incidente sobre o resultado da atividade empresarial precisa acompanhar alguma política econômica de direcionamento da atividade empresarial. Indaguemos, então: qual a “tax policy” que informa a proposta em curso? Ninguém sabe. Nenhuma linha foi escrita.

De estímulo, agravamento ou de neutralidade, a tributação que cause impactos sobre o fim lucrativo do exercício de livre-iniciativa, que é um dos fundamentos do próprio Estado, como o declara o art. 1º, da Constituição, reclama motivação em fins e valores constitucionais. Daí a relevância da política fiscal vir destacada, como expressão do planejamento público (art. 174 da CF), que é dever do Estado, para orientar a direção da ordem econômica aos particulares.

A razão é óbvia. O custo do capital investido induz as expectativas sobre remunerações das fontes de financiamento (próprias e de terceiros), a justificar as decisões dos sócios ou acionistas em favor da lucratividade possível. Por isso, como observa Alexandre Assaf Neto, o custo de capital é geralmente isolado a partir de cálculo dos custos de oportunidade (sócios ou acionistas) e aquele do capital de terceiros (weighted average cost of capital)1. E tudo isso segue uma dinâmica de sucessivas avaliações de custos e de oportunidades da sua assunção, comparativamente com outras alternativas, tomando em consideração o risco e a rentabilidade.

A taxa de retorno dos investimentos próprios aplicados na empresa deve sempre servir de estímulo aos interessados, em adequada política de dividendos, tanto pública quanto privada, ademais do dever que o ordenamento tem de preservar a certeza do direito e a segurança jurídica no tempo, em respeito às decisões dos particulares de investirem em sociedades, pelo fundamento de livre iniciativa que deve ser preservado em todos os seus contornos (art. 1º e 170, além do 174, da CF).

Os dividendos são espécies de remuneração do capital de risco investido, como custo de oportunidade; logo, é “a parcela do lucro produzido que deverá vir a remunerar diretamente o fator capital” 2, como sintetiza Marcos Paulo de Almeida Salles, Professor da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo.

Por isso, quando os sócios ou os acionistas decidem, ao amparo da legalidade, qual a melhor opção para remunerar o capital, auspiciam segurança jurídica na continuidade do investimento, considerando inclusive, dentre outros aspectos igualmente importantes, a melhor rentabilidade possível, pela maximização dos lucros e distribuição de resultados. A política de dividendos é matéria com a qual nenhum investidor pode abrir mão de rigoroso controle das modalidades eleitas, segundo a orientação do planejamento público (art. 174 da CF).

Basta ver a repercussão sobre os preços em ofertas que foram feitas nos processos de licitação de concessões ou permissões. Não há dúvidas que o preço vencedor levou em conta o custo tributário sobre as remessas de dividendos. Com tamanha guinada, sem respeito ao passado, este é um fato do príncipe que poderá motivar diversos pedidos de reavaliação das políticas de preços. Mais um caso em desfavor da população.

Portanto, impõe-se observar regras de transição que assegurem a proteção dos investimentos em relação ao passado. No caso dos JCP, por exemplo, não se pode admitir que se negue a dedutibilidade aos empréstimos tomados antes da entrada em vigor da lei. É o mínimo de estabilidade temporal ao qual o direito tributário se impõe.

A partir de uma análise do Relatório de McLure3, Henry Tilbery foi o primeiro autor que trouxe para o Brasil o estudo mais completo sobre os métodos de tributação do capital e das diversas técnicas para evitar sua dupla tributação econômica. Há distintos modelos de tributação de dividendos.

O Brasil atualmente aplica dois desses métodos: para os dividendos propriamente ditos (i), uma integração total, pelo método da eliminação da tributação das pessoas jurídicas em separado e tributação nos acionistas dos lucros distribuídos; e, para os JCP (ii), o método da Dedução dos Dividendos Pagos (Dividend Paid Deduction), pelo qual a pessoa jurídica pode deduzir da base de cálculo dos lucros tributáveis, como espécie de integral parcial4.

Para uma futura reforma, o ideal seria criar um escalonamento de alíquotas progressivas, conforme os tipos de apuração dos rendimentos, a exemplo: Simples Nacional: 5% sobre o valor distribuído; Lucro Presumido: 7,5% até doze milhões de faturamento; 10% até o limite final; Lucro Real: 15% sobre os dividendos distribuídos.

O Fisco talvez suponha que todo empresário deva escolher o método que implique pagar mais impostos e que lhe garanta menor capacidade de crescimento do negócio e de enriquecimentos dos seus sócios ou acionistas, mas não é assim. Tanto a Lei das Sociedades Anônimas quanto o Código Civil obrigam-no ao contrário e impõem ao administrador escolha as opções mais rentáveis e menos custosas como forma de perseguir a função social da empresa.

Ora, a coerência do sistema requer adequada ponderação dos princípios constitucionais, na proteção do direito à livre-iniciativa, bem como o respeito às regras de direito privado que dispõem sobre o tratamento aplicável ao capital privado empregado na atividade produtiva. O direito de liberdade de escolha sobre os melhores métodos de remuneração do capital, dentre os autorizados pela lei, como exercício de autonomia privada na gestão do capital, repercutem a confiança depositada no Estado e no regime jurídico em vigor ao tempo dos investimentos. Mudanças, é certo, podem e devem ser feitas, mas com atenção para garantir segurança jurídica e respeito à previsibilidade.

A formação e funcionamento de uma empresa envolve um conjunto muito complexo de fatos financeiros que podem ser determinados em dois momentos bem específicos: o da capitalização, quando da formação do capital social, na constituição da sociedade, e aqueles do financiamento, de condução do capital das suas fontes para o patrimônio da sociedade, surgidos no seu percurso de funcionamento, com a finalidade de ampliar a atividade econômica da empresa e produzir lucros.

Essa decisão sobre financiar-se com capital próprio ou mediante investimentos de terceiros, como dito antes, não é, de longe, uma decisão fundada em interesses de aproveitamento de alguma vantagem fiscal, por ter efeitos imediatos sobre o valor da empresa e dos resultados distribuídos, como o preço das ações ou mesmo do crescimento do lucro líquido da entidade.

Estudos desenvolvidos na FEA-USP demonstram que a tributação diferenciada dos juros sobre o capital próprio aumenta o valor e o retorno ao acionista de uma empresa financiada por meio de recursos próprios. Disso resulta que a eficácia gerada pela legislação de juros de capital próprio garante a escolha do melhor método de financiamento da empresa (de capital próprio) sem os riscos gerados por financiamentos de terceiros (empréstimos e semelhantes) em alavancagens da empresa, ou pela ampliação do capital investido.

No direito brasileiro, o Juro sobre Capital Próprio (JCP) apresenta natureza comparável aos dividendos, e mesmo definido como “juro”, deve-se qualificá-lo como distribuição de resultados, pois: i) os JSCP são modalidades de investimento; ii) somente podem ser pagos quando apurado lucro no período; iii) o pagamento dos créditos é opcional; iv) aplica-se a dedutibilidade dos montantes distribuídos à apuração do lucro da entidade; v) podem ser compensados com dividendos obrigatórios, segundo o previsto na Lei das S. A.; e vi) a empresa ficará obrigada ao pagamento do IR-Fonte, mediante alíquota de 15%, a título definitivo ou como antecipação, além da discutível e indevida cobrança de PIS/COFINS.

Esse mecanismo, a exemplo daquele adotado nos Estados Unidos, visa a desencorajar o recurso à contratação de empréstimos com terceiros, substituindo-os (ou pelo menos reduzindo-os) por um incentivo aos acionistas para reforçarem o capital das empresas com recursos próprios. Tudo como forma de fomento ao DVA da empresa.5 Trata-se de medida útil para aumentar a liquidez das empresas. No momento da pandemia, diante da escassez do crédito público, ou do custo elevado dos empréstimos dos bancos, além do risco de variações no período, o JCP foi de extrema importância.

Por todos estes motivos, além de tantos outros que dizem respeito às alterações pontuais da legislação, o mais correto, neste momento, seria o Governo abandonar este projeto. Cientes, todos, de que temos um encontro marcado com a reforma tributária do consumo, da renda, da propriedade e dos salários tão logo tenhamos projetos amadurecidos e quando minimamente superados os impactos da pandemia. O Leviathan pode esperar, enquanto a sociedade se reconstrói.

1 Passim, Assaf Neto, Alexandre. Contribuição ao estudo da avaliação de empresas no Brasil. Ribeirão Preto: FEA-USP, 2004, Tese (Livre-Docência), p. 61;

2 Salles, Marcos Paulo de Almeida. Política de dividendos. Revista de Direito Bancário, do Mercado de Capitais e da Arbitragem. São Paulo: 2001, v. 4, n. 14, p. 79-89, out./dez. 2001, p. 79-89; Cf. BULHÕES, Octavio Gouveia de. Dois conceitos de lucro. Rio de Janeiro: Apec, 1969, 212p.

3 TILBERY, Henry. Imposto de renda – pessoas jurídicas: integração entre sociedade e sócios. São Paulo: Atlas, 1985, p. 86; Cf. McLure Jr., Charles E. Must Corporate Income Be Taxed Twice? – A Report of a Conference Sponsored by the Fund for Public Research and the Brookings Institution. Brookings Institution Press, 1979, 262 p.; MODIGLIANI, F.; MILLER, M. The cost of capital, corporation finance and the theory of investment. The American Economic Review, 1958, v. 48, n° 3, ps. 261-297; ____. Corporate Income Taxes and the Cost of Capital: A Correction. The American Economic Review, 1963, v. 33, n° 3, p. 433-443. PISTONE, Antonio. La tassazione degli utili distribuiti e la thin capitalisation: profili internazionali e comparati. Padova: CEDAM, 1994, 429 p.; XAVIER, Alberto. Natureza jurídico-tributária dos “juros sobre o capital próprio” face à lei interna e aos tratados internacionais. Revista dialética de direito tributário, São Paulo: Dialética, 1997, nº 21, jun., p. 7-11.

4 Noé Winkler reconhece similar efeito de dividendo, ao mencionar da importância do regime de JSCP: “introduziram-se compensações, atenuantes da carga fiscal, destacando-se a redução da alíquota de 25% para 15%; a integração tributária na incidência sobre lucros e dividendos, estabelecendo-se unicidade – pessoa jurídica/pessoa física, com a tributação exclusiva desses rendimentos na empresa, isentando-os quando do recebimento pelos beneficiários – na fonte ou na declaração de ajuste anual; e, como destaque importante, a dedução de juros a título de remuneração do capital próprio” (grifamos). WINKLER, Noé. Imposto de Renda. 2ª ed., RJ: Forense, 2002, p. 517.

5 Santos, Ariovaldo dos. Demonstração contábil do valor adicionado-DVA: um instrumento para medição da geração e distribuição de riqueza das empresas. São Paulo, Tese (Livre Docência), 1999, 2 v.;

Autor: Heleno Taveira Torres – Professor titular de Direito Financeiro da Faculdade de Direito da USP; presidente da Associação Brasileira de Direito Financeiro (ABDF); foi vice-presidente da International Fiscal Association (IFA); membro do Conselho Universitário da USP; e advogado.

Fonte: Associação Paulista de Estudos Tributários 

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